Tinham vindo quando o bairro dormia há longas horas. Bateram forte, uma, duas, três vezes. À primeira pancada Júlio estremeceu. Os olhos furaram paredes e viram reais os dois Pides. Júlio há muito pressentia que estava por pouco. Conhecia bem Alves e sabia que os seus nervos não eram de aço. Quando um camarada o avisara da prisão de Alves, ao seu espírito aflorou a ideia de fugir. Fugir seria bom, mas a Europa estava tão longe. Como atravessar uma Espanha tão longa e tão falangista, sem documentos? E Duarte, agora em Peniche, veio sobrepôr-se a este desejo. Duarte tinha logrado fugir à PIDE e, com a ajuda de um camarada arraiano, atravessar a fronteira. Caminhava de noite e escondia-se de dia. Alimentava-se de frutos, quando apareciam, e de ervas, bebia água imunda. Cedo as provisões que levara se esgotaram. Faminto, exausto e miserável foi encontrado certa manhã à beira de uma estrada pela Guarda Civil. Por estar indocumentado foi entregue às autoridades portuguesas e lá rumou para Peniche, sem antes ter sofrido os horrores das câmaras de tortura tão bem inventadas pela Gestapo.
À segunda pancada Júlio levantou-se e à terceira abriu a porta. Mostraram os crachats já dentro de casa. Onde é o quarto, perguntaram. Júlio sentia uma dor forte na nuca e os olhos bem abertos agora nada viam. Dirigiram-se à pequena estante e, um por um, foram folheando os livros, talvez uma dúzia, duas dúzias, viam-nos sem interesse e deitavam-nos para o chão. A lâmpada de 15 velas dava uma luz amarelada e fazia reflectir dois polícias gigantescos na parede branca do quarto. Sob a cama farejaram uma pequena mala. Com uma praga um dos Pides baixou-se e retirou-a. Abriram-na e com uma exclamação de prazer lobrigaram alguns livros e jornais, Marx, Lenine, Avante, enchiam a pequena mala. É o suficiente, disse um dos Pides. Veste-te e vem, ordenou. Não é preciso grande roupa porque vais apanhar um bom calor, gargalhou um dos Pides. Num quarto ao lado a mãe de Júlio estava acordada, mas não sobressaltada. Não sabia do que se tratava e, por vezes, Júlio recebia amigos que vinham já muito dentro da noite. Posso despedir-me de minha mãe? Não vale a pena, quando ela puder vai visitar-te. Apressa-te que já estamos demorados. E arrastando Júlio saíram de casa. É aqui, disse o funcionário. Flores murchas caídas de um velho solitário salpicavam a campa. Mãe. Um soluço morreu abafado na garganta de Júlio. O pensamento retornou quatro anos atrás. A madrugada da prisão, as torturas, o julgamento e a vida na prisão. A liberdade. O camaradas que resistiram e os que ficaram pelo caminho. E a mãe cada vez mais gasta, a morrer aos poucos, apesar dos camaradas, dos amigos, dos vizinhos, a ajudarem tanto quanto podiam. Por eles soube como a mãe morrera. Júlio foram as últimas palavras que dissera.
Olhou em redor e os olhos fixaram-se nas portas de ferro de um jazigo, e logo o pensamento saltou para a oficina onde tantas daquelas portas tinha feito. E reviu a cara medrosa do patrão, olhos fixos no chão, a boca abrindo-se e fechando-se a soltar palavras cobardes e nojentas. Sabe, Júlio, você e um bom operário, mas compreende não o posso readmitir, fazemos muitos trabalhos para o Dr. Santos, o da União Nacional, e ele já me avisou que não pode continuar a ajudar quem dá trabalho a comunistas. Tenha paciência Júlio, veja se arranja emprego noutro lado, sou muito seu amigo, mas o Dr. Santos...
Publicado in Diário do Ribatejo - 28/Novembro/1974
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