Catedral de Milão
De Milão recebo carta de Silvana. Desta vez não é uma mensagem de optimismo ou de saudade. Vem-me à memória - sonho ou realidade - aquela tarde de fornalha quando conheci Silvana na Piazzale Corveto. Ambos esperávamos transporte. Eu para a via Dante. Ela não sei para onde. O meu italiano, que era afinal uma mistura de português - espanhol - francês - italiano, não era compreendido por ninguém. Quem percebia os meus desejos de um autocarro que me conduzisse ao Castelo nas proximidades da via Dante, se o que eu estava falando era idioma de parte nenhuma. Silvana supôs que eu fosse sul-americano e veio em socorro. Falou-me em espanhol aberto e rápido. Disse-lhe ser português em busca de uma cidade que me assombrava pelo conforto moderno-antigo, pelo labor dos milaneses, pelas grandes bibliotecas e museus, quem poderá ficar indiferente ao percorrer a galeria de pintura Brera, pelo famoso teatro lírico La Scala, pela grande catedral gótica, pelo mosteiro de Santa Maria della Grazie e por tantos maravilhosos edifícios de que Milão é fértil. Tomámos o mesmo transporte e fomos conversando mais sobre Portugal do que a respeito do seu país. Rapidamente estávamos defronte do Castelo da via Dante. Silvana foi tão gentil que se prontificou a servir de cicerone na visita ao magnífico Castelo. Nasceu assim a nossa amizade agora apenas mantida por cartas que, de longe em longe, trocamos. Silvana tem sido sempre uma mulher corajosa e optimista, mas agora, tal como a Itália, mostra-se céptica e escreve-me cartas como esta: «Na Itália temos agora um novo governo que acaba de apresentar o seu programa. Parece sério, desta vez, e a situação actual que está bastante grave, deixa ver algumas pequenas luzes de esperança. Mas será necessário que toda a população esteja pronta a participar nos sacrifícios da colectividade se se quiser de novo trilhar os caminhos para o bem estar. Acusam-nos de pessimismo, mas creio que o pessimismo está bem justificado neste momento. A situação é difícil, os problemas são graves, os preços sobem continuamente e por consequência os sindicatos exigem salários mais elevados que as empresas não estão em condições de satisfazer sem o perigo de encerrarem. Durante as festas de Natal a maior parte das empresas fechará durante duas semanas: não têm encomendas suficientes e, por isso, preferem conceder férias suplementares aos trabalhadores, do que abrir as fábricas com o pouco trabalho de que dispõem. Os trabalhadores terão férias extraordinárias: talvez seja bom, mas surgirá o problema de preencher estes dias sem trabalho, com a impossibilidade de utilizar o automóvel, porque a gasolina está muito cara, de ir ao cinema, porque os bilhetes estão caros, de ir para a montanha ou para a beira mar, pelas mesmas razões. E além disso, as cidades não estão feitas para as pessoas que não trabalham: não há jardins, não há bibliotecas, não há lugares onde seja possível as pessoas reunirem-se para discutir, talvez teatro, talvez literatura, não importa o quê. Os trabalhadores falam apenas dos problemas do trabalho, dos sindicatos, etc.. E as casas não são suficientemente confortáveis para acolher durante todo um dia as pessoas que nada têm para fazer».
Texto publicado em 25 de Dezembro de 1974
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